sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Encontro Sertanejo

A dança de piados tecia a tarde escaldante numa estrada poeirenta do sertão. Apesar do manto tórrido que se estendia pela caatinga, os passarinhos pulavam alegres. Quem vinha na estrada era são Francisco.

Do lado oposto, um almocreve tangia seu burro carregado de mamonas escorrendo sua baba pela base cortada. Silenciosos, saudados pela fileira de avelóis que vez ou outra quase fechavam a estrada perdida, os dois caminhantes foram se aproximando.

São Francisco carregava apenas um bornal murcho e certo brilho no olhar. Quando iam passando um pelo outro, cumprimentaram-se com um aceno: “opa”.

Vendo o tecido malamanhado que pendia esmorecido na cintura do santo, o almocreve então perguntou brejeiro:

- Ô compadre, o que o senhor leva aí nesse bornal meio sem sustância?

O santo, com as mãos livres, estendeu-as ao bornal e apertou o pano mole. Abriu então um sorriso luminoso e respondeu:

- Meu amigo, trago aqui comigo apenas a alegria. A alegria perfeita. Quer um pouco?

O almocreve riu e passou sem mais nada falar mas gostando da gentileza daquele dizer. Estranhamente, no entanto, notou algo diferente no prosseguir do caminho. Percebeu que o dia estava ensolarado, mas não tanto quanto seu coração.

Piavam como pífanos de uma estripulia sinfônica os pássaros, enchendo a tarde de manhã.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Terço da Paixão

Dentro da caixa de papelão, o menino ronronava. Sem saber quanto de febre fervia o corpo da criança, a mãe dizia em lamento: “Ô meu filho, não morra, não. Meu filho está morrendo...”

Já estavam largadas as coxas de frango e dois marmitex num saco ao lado. Pelo menos nesse momento, a fome sempre constante não mordia seus estômagos. Havia muitas horas que, de olhos fechados, o menino balbuciava um sopro morno e desfalecido. Clareava seus rostos o pisca-pisca da loja em frente.

Tocou o sino da igreja mais uma vez. Seriam 10 ou 11 da noite. Ainda andavam pessoas pela rua.

Então o menino abriu os olhos de leve. Tentou encontrar os olhos da mãe. Fixou-se neles. Esticou a mãozinha, que ela segurou paralisada. Apenas um som fino que tentou dizer “mãe”, mas se esfiapou.

Ele deitava suas costas suadas no colo do vento e subia bem alto, quase voltando a sorrir. A mãe lembraria que quis dizer tchau.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Revolucionários

Já enrugadas de tantos anos, as mãos quase centenárias iam desvelando as brancuras que se aqueciam sob os cabelos da menina. Uma pele alva de mocidade refrescante a receber o afago doce daqueles dedos que entravam e saíam por entre os fios longos e perfumados de sabão e âmbar.

Guardada pela boca trancada, o som da melodia antiga. A velhinha embalava a brisa. Leve vento hipnotizado pela candidez da música que mal se ouvia com os ouvidos exteriores.

Era tarde com sol. Há 159 anos atrás. Aquela menina tornou-se também uma senhora, um dia. Fez doces de cidra e doces de alma. O primeiro consolava o paladar, o segundo a esperança. Quando recebeu os 40 e tantos tiros de fuzis, com seus olhos vendados e mãos amarradas para trás, tinha nos lábios o sorriso decano que lembrava uma tarde de afago com sua vó.

Seu último suspiro ensangüentado era doce de lembranças.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Vapor Sobe, Sísifo

Não há nada para fazer hoje. Nem o sorveteiro passou buzinando. A rua só queima um vapor dançarino que se insinua poucos centímetros acima do asfalto. Vez ou outra um grito de mãe: “Lazarento, entra pra dentro senão te lasco na cinta!”. Choro de criança, rádio ligado, risada esgarçada.

Sair da cadeira é um desafio. Ficar também. Precisar estender umas roupas no varal eu até precisava, mas não vou. Por enquanto, a bacia também assenta os trapos largados que nela se amontoam.

Mas a Cátia disse que vem. Vai ser bom se ela não tiver uma daquelas crises. Não estou com saco para ouvir traumas do antigo namorado. Porra, não tem eu agora? Já tive paciência demais. Paciência hoje não. Dá vontade de pegar aqueles bracinhos finos, apertar bem e danar um beijo. Se ela começar a fazer corpo mole, jogar ela na cama e arrancar a roupa. Tesão de raiva é forte, de tédio mais. Um pensamento como um plano perfeito. Tudo programado? À puta que o pariu...

Sei que na geladeira tem um rum velho. Sim, evaporar como a fumaça morna do asfalto, lânguida, cheia de ausência. Queria esticar o braço e alcançar minha alma. Caralho, ainda pensando poeticamente. Que merda... Já cansei de ficar convencendo aqueles playboys da Augusta a comprarem meus fanzines. Vão tudo tomar no cu, isso sim.

Já perdi 5 quilos só de ficar bebendo, fumando e batendo punheta. Pedindo cigarro, ganhando rum velho, revendo as mesmas bundas da revista de mulher pelada. E trinta e seis anos nas costas. Ultimamente só com dinheiro de fanzine e camiseta tai dai. Vontade de cagar tudo logo, viu. Que se foda. Não ver o outros, bom pra caralho. Nunca mais me ver, a glória. Fuder com tudo e desaparecer. O vapor sobe.

A campainha está tocando. Deve ser a Cátia. Graças a Deus.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Em Busca Dela, Que se Vestia de Talvez

Passava suspenso, correndo ao andar, andando de supetão em supetão. Mas teve que olhar uma rachadura verde, brotando um pequeno fio estirado de musgos que espichavam um mundo escondido para fora de uma parede de fábrica. Galpão marrom, grande, fechado, lá dentro um pisar de máquinas revezando seus barulhos. Atravessou nova rua com o aconchego daquela imagem de musgos na frente de seu olhar. Quando a rua fez curva, ia explodir de mágica pronto a vê-la. Mas não estava lá. Avistou um cruzamento à frente. Sabia que ela tinha virado à esquerda na rua do posto. Sabia porque sentia. Já não havia reforço de seu perfume no ar, mas ainda conservava a memória de alguns minutos atrás, quando seu cheiro tinha entrado íntimo em seu nariz.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Esquerdas Capitalistas e os Anões Gigantes

Muitas vezes os grupos organizados em partidos, organizações burocráticas de esquerda (ou de esquerda burocrática) reivindicam para si a totalidade da revolução. E, no entanto, talvez os pequenos grupos minoritários das revoluções moleculares estejam fazendo muito mais pela revolução do que aqueles. Estes pequenos por vezes não são considerados pertinentes pelos grupos explicitamente revolucionários, que se outorgam o modelo de como ser revolucionário de forma acachapante e homogeneizante. No entanto, os “pequenos” às vezes causam muito mais rachaduras no capitalismo do que aqueles que esperam o “grande dia” sem perceber o valor das pequenas subversões de grande impacto (pequenos, pequenos, pequenos).

Respeitar as singularidades. Horizontalizar as relações – ao invés de ficar formando quadros hierárquicos (Por saberes? Por liderança? Por carisma? Por experiência partidária?) que reproduzem, e pior, reforçam o modelo de hierarquizações capitalista.

É por isso que a revolução também precisa acontecer nos níveis moleculares (escolas, rádios, veículos de comunicação, ciências, grupos minoritários, cotidiano, hospitais, mentalidades, família etc.). Caso contrário, mesmo os mais esquerdistas não farão senão reproduzir o vírus capitalista em uma estrutura chamada socialista. E esse vírus pode fazer com que a sociedade socialista reivindicada (e construída) seja tão doente quanto o capitalismo. E, ironicamente, doente pela contaminação do vírus capitalista, adquirido do corpo moribundo do capitalismo que lhe inoculou nos níveis moleculares e ao qual os grupos revolucionários de esquerda não se preocuparam em exterminar – por acharem que não fazia parte das preocupações mais fundamentais e urgentes da revolução; enfim, por acharem que eram questões menores e pós-modernas (o velho vício de confrontar um argumento, não com outro argumento, mas com um rótulo acachapante e desqualificador)...

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Uma Poesia do Sim Resgatado

Andar, no meio do começo, na trincheira dos desafios, no sono do medo, aproveitando para pular sobre as sentinelas olhudas. Eufórica, a notícia do sim, a fonte das dúvidas, a crise e a crase em direção à ela. A todos, um grande gesto-flecha, pontuda ponta de perguntas, sempre valiosas.

O feminino, o masculino, a chupada fenomenal da ansiedade no falo da entrega. O mergulho no gozo da grande dúvida. A serenidade, o pão, as carroças, o antigo e o novo. O hoje na promessa do amanhã que se planta no agora.

Sim, são sempre novos os silvos da vida que passa pela pequena brecha da porta. Sempre presentes na rachadura do dia, ainda que a manhã seja apagada. Eufórica, a constelação de desejos, que como diz um aí, é sempre o desejo do Outro. Mas com cantos solenes de despedida, no coral afinadíssimo, encomendei um tchau ao Outro que não quer, ao Outro que quero que me queira. Porque com véus dos ritos e calcinhas do puteiro, ela me quis.

Seu nome?

Terça-feira ou O Enigma da Bela Idosa Amante do Vento

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Pronto Atendimento de Santo André - 15 de Novembro de 2006

Quando chega na enfermaria do Pronto-Atendimento Central de Santo André, Aurora Flores* vê uma sala cheia de poltronas cinzas contornando o espaço. Sobre elas, pacientes conversando, gemendo ou apenas olhando assustados para algum lugar do vazio. Também há alguns pacientes sobre macas. As poltronas, muitas delas já surradas e mostrando a espuma por baixo do courim, ficam encostadas às paredes, dificultando que se possa recliná-las para deitar. Muitos idosos se ajeitam em seu desconforto.

No centro da sala, um grande balcão onde as enfermeiras se fecham carrancudas. Somente quando alguma delas solta um desejo escondido é que as demais parecem se animar junto. "Acho que com isso (aponta um frasquinho) afeta o sistema digestivo. Será que ele morre?", ela torce com olhar divertido. Os pacientes e acompanhantes que estão por perto, chocam-se silenciosamente com a brincadeira da enfermeira. Sem perceber, ela sai com seus cabelos loiros levemente desgrenhados e rugas incipientes em direção a um paciente nas salas reservadas.

Aurora Flores chegou lá com uma suspeita de derrame, ou mais precisamente, Acidente Vascular Transitório. Como não há aparelho para fazer tomografia, Aurora fica sob observação para aguardar se aparece alguma seqüela e, então, possam encaminhá-la para o exame em outro local. Enquanto isso, tentam manter sua pressão um pouco mais elevada do que o normal, a fim de garantir o bombeamento de sangue para o cérebro. Por isso, é necessário medir a pressão dela com freqüência.

Sua neta, Carla dos Santos*, aguarda um tempo num dos corredores do Pronto, defronte a um consultório onde um médico baixo, atarracado e de óculos atende. Embora seja feriado de 15 de novembro, Carla passou longe de ter qualquer descanso. Sua avó está doente. Avó que é quase mãe, pois foi quem cuidou da moça quando esta era criança. Seus pensamentos voam, cheios de temor, esperança e fé. Fixando os olhos no fluxo de sua imaginação, leva um susto quando o médico no consultório em frente chama sua atenção.

- Por que você está me olhando?, pergunta franzido.

Carla responde que não estava olhando para ele. Não estava olhando para lugar nenhum especificamente.

- Então, por favor, vá para outro lugar. Não fique em frente à minha sala, ralhou.

Ela obedece com um misto de angústia, desamparo e raiva.

*Os nomes reais foram alterados para preservar as pessoas

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Manifesto Pró-Jornalismo (rejeito)

Para ser "pró alguma coisa", muitas vezes é preciso identificar os inimigos. Para acolher o jornalismo, é preciso rejeitar. Então vai aí o protesto-rejeito:

- rejeito o jornalismo em que o repórter domina uma situação com o entrevistado ao invés de se abrir a ela;
-rejeito o jornalismo do pré-roteiro;
- rejeito o jornalismo de gabinete;
- rejeito o jornalismo comedido (me ajuda aí, Bandeira) e bem comportado;
- rejeito o jornalismo em que o repórter sai com hora marcada para voltar;
- rejeito o jornalismo das entrevistas de cinco minutos;
- rejeito o jornalismo em que o repórter somente suga seus entrevistados e não aceita uma relação de troca;
- rejeito o jornalismo da prepotência;
- rejeito o jornalismo da superioridade do jornalista em relação às situações que observa ou (pior ainda) aos seus entrevistados;
- rejeito o jornalismo medroso;
- rejeito o jornalismo sem criatividade e refém dos press-releases (conseqüência inevitável do repórter que não sai a campo ou não enxerga o que olha);
- rejeito o jornalismo manualzinho de regras e padrões;
- rejeito o jornalismo sem causa (tenho percebido que não ter causa é pior e mais cínico do que ter uma causa elitista);
- rejeito o jornalismo empáfia;
- rejeito o jornalismo que diz que tudo o que sai do padrão sem gosto é nariz de cera;
- rejeito o jornalismo “bom é o que faz mais rápido”;
- rejeito o jornalismo “fofocas de governo”;
- rejeito o jornalismo que usa o(s) conceito(s) de objetividade para justificar qualquer atitude desumana, linguagem robótica e exclusividade de voz às autoridades.

Manda aí a sua rejeição também. E foda-se o jornalismo com cara de sofá e assoalho lustrado. E viva o jornalismo!

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Sou Rede, Sou Fios, Vocês

Como dizia meu amigo Riobaldo Tatarana, se eu fosse vender minha alma, venderia muita gente junto.

Não há uma só linha de escritos, uma só seqüência de roteiro, um só verso que não esteja impregnado das pessoas que transpassaram minha alma com suas vidas. A ponto de eu ser apenas um representante que materializa a confluência de muitos gestos, muitas intenções, muitas insinuações.

Se eu tiver um mínimo que seja de sensibilidade para escrever algo sobre o amor, por exemplo, se é que tenho alguma, eu a adquiri das muitas garotas que até mesmo sem saber incharam as horas límpidas que as imaginei junto a mim. Creio que para qualquer tipo de sensibilidade que tenha, as que responderam “não...” contribuíram talvez até mais do que as poucas que disseram “sim!”, embora uma ou outras destas últimas tenham marcado completamente minhas estradas silenciosas.

Professores, pai, a mãe daquela conversa madrugada adentro que clareou o rumo de minha vocação e me deu coragem de mudar, amigos e as pedras no sapato (tantas) que fizeram as tardes mais tristes e o coração mais atento. E os atrasos (obrigado, pai) na escola, benditos atrasos, por causa deles (e das regras rígidas que o diretor decretava) eu tinha que ficar de fora de toda a primeira aula e esperar a segunda começar, cinqüenta minutos depois. Benditos atrasos que me possibilitaram vasculhar todos os dias (é... eu era realmente o atrasildo da classe) os livros da biblioteca amanhecida com a pele clara e receptiva ao meu toque tão carente. Quantos livros, desde os contos de Herman Hesse até as fotos do grande livro de letras das músicas do Tom Jobim. Ler e escrever, todo dia, todo o atraso, castigo que me deu asas.

Na outra escola, mais desumana e mercadológica, já não me deixavam sequer esperar a segunda aula dentro da escola. Então, em meio às manhãs enevoadas e úmidas de Santo André, eu andava pelas ruas do Centro calado, Centro estremunhado, abrindo seus olhos de fachada devagarzinho, com ruído e ferrugem. Graças, porque a cada passo nas vagarosas manhãs antes que batesse o horário da segunda aula, eu dedilhava angústias, esperanças, sonhos, despertares verdadeiros, dos quais sou resultado grato. Cada ranhura e pedaço que despedaçavam me tornaram mais imperfeito, mais completo (com licença, Barão Vermelho), mais pinel, ou seja, mais vulnerável a fazer merda tanto quanto a cumprir minha pequena parte na luz desse mundo.

Obrigado, professora Márcia, louca tanta santa, nas peças e loucuras que rachavam minúsculas crateras de cor pelas paredes grossas da educação rígida, escola. Obrigado irmãzinha, pelos túneis de sofá que formávamos fugindo da móca monstra chorando pela casa. Obrigado, pai, pelos perfumes de circo que escapuliam de sua rigidez artística. Obrigado, pai, pelos apoios incontinentes de me salvar da perdição que tem nos salvado, paradoxo de nossa condição (pra que fugir?). Obrigado Carrascoza, Mayra, Calazans, Sevcenko, Adriana, Vitor, pelos exercícios de narrativa sensível das revoluções internas e externas que tentamos compor nos papéis e telas desenfreados. Obrigado amigos (tantos que fica até difícil escolher este ou aquele para representar), obrigado pelos preciosos estímulos à vida e à morte superior.

Cada linha, cada traço, cada som, cada tentativa são veias, peles, olhares seus que estão se manifestando, instaurando-se novos como a brisa mais antiga. Até no que não gosto e faço testando os limites dos editores, minha impertinência pertinente (como são todas, sempre, de todos) são pedacinhos que trago de vocês até aqui fora, com birra de pantim.

Parece até uma injustiça ser elogiado ou criticado sozinho. Sintam-se como são: eu.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Rachaduras

Quanto há de autonomia? Quanto há de liberdades? Capitalismo e liberdade? Como se dá essa liberdade?

Pululam, puxam, de todas as formas vão prendendo as gentes, o capitalismo em sua forma de micro-dominações. A televisão, adorada pelos vários cruzamentos da teia capitalista. A televisão, instrumento predileto da dominação pelo isolamento. Famílias atomizadas, condução, horas, aperto, horas, minutos, trabalho, as famílias chegam para se divertirem depois de um dia inteiro, jornada de 8 horas com cafezinho e ginástica laboral de 20 minutos, condução, as famílias se espremem no sofá sob cobertores, sob aplausos da platéia que julgam fazer parte, aperto, catraca, troco, mais 2 horas para voltar, cansaço, a família se fecha na sala iluminada pela TV, se esconde dos vizinhos que assistem ao mesmo programa ou outros que passam pelo cabo, a família se liga ao mundo, se conecta, se cosmopolitiza, se dobra no sofá, cansaço.

As chantagens do capitalismo. A chantagem da miséria (essa é boa, do Guattari). Quem exprime seus desejos, quem respeita seus desejos vai ficar de castigo. A punição? A miséria. Quem não se encaixa-se enforma-se deforma-se enquadra-se esquadrinha não ganha emprego, ou não permanece nele. Chantagens. Miséria.

O ar, a água, os pássaros, as cores, o sexo, os poemas, a solidariedade, as nuvens, as lagartixas, os gostos, os assovios? Na medida certa, na dose moderada, equilibradamente, somente um pouco depois do jantar ou na excursão de fim de ano. E tome seu chá verde para aliviar a dor, Campeão (soquinho no queixo).

Saiu do ciclo café-condução-trabalho-café-cigarrinho-trabalho-trabalho-café-cigarrinho-condução-família-refeição-televisão-sono-ronco-despertador-café-condução... vai preso. Ah, vai. Vai preso pelo preconceito. Vai preso pelos olhares. Vai preso pela recriminação dos amigos, da família, do empregador, do cobrador do ônibus, do chofer, e até dos colegas revolucionários. Vai preso.

Qual a revolução? A que deixa de lado a revolução do cotidiano? A que deixa de lado a revolução da família? A que deixa de lado a revolução das mentalidades?

Revolucionar. Romper e transformar as grandes estruturas sem romper e transformar as mentalidades, a vida cotidiana, a relação entre gêneros, a educação das crianças, as psicologias, a comunicação, sem romper e transformar a vida do dia-a-dia é revolução?

Rachaduras. Cada movimento, cada ato, cada pequeno processo minúsculo de subverter a ordem. Rachaduras. Vão tapando uma ali, outra aqui. Mas as rachaduras vão se espalhando em varizes infinitas pela parede...desmoronamento. Quando os grandes processos revolucionários acordarem, os minúsculos processos revolucionários já estarão quase completando a revolução. Aí, de mãos dadas, um e outro, grande e pequenos, pequenos articulados horizontalmente em um grande movimento, vão transpor o arame farpado. Capitalismo: anti-desejo.

Os corpos libertos, as crianças libertas, os pacientes libertos, as mulheres libertas, as chantagens desfeitas, desmascaradas.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

O Repórter, o Mundo e a Abordagem

O jornalista tem que fazer um grande esforço para captar a realidade – que sempre é muito maior do que o repórter pode sorver e transmitir por meio de uma linguagem. O problema é quando, ao invés de sair a campo para captar a realidade – o máximo que ele puder – ele sai apenas para recortar da realidade as peças de um quebra-cabeça que ele já montou ao seu modo – e em sua cabeça – antes de sair. Fazendo desta forma, ele não se conecta à realidade, apenas a usa. Ele somente se liga à realidade de suas concepções egóicas e não se liberta para a realidade do mundo (e, assim, tampouco ajuda a libertar ninguém).

Esse último jornalismo - egóico, prepotente e pré-conceituoso - serve ao capitalismo (sob o pretexto de ser objetivo, ágil e conciso, para se opor ao impressionismo, à visão política das relações de trabalho, ao tempo estendido de apuração e à extensão vital do texto), é apenas uma pré-pauta recheada de enxertos da realidade que a justifiquem. Nunca isso é reportagem ou notícia.

Porque, por melhor que tenha sido a apuração da produção (entenda-se “produção” todas as atividades que antecedem a saída do repórter a campo, tais como pesquisas, pré-entrevistas etc., realizada pelo próprio repórter ou por um produtor), sempre há diferenças entre a realidade presente na produção e a realidade do campo. E o mal repórter fará essas duas realidades coincidirem à força de fórceps.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Diante do Sinal Fechado, Meu Irmão de Espelhos Estilhaçados ao Som de Nossos Silêncios

Hoje, mal o vagão começou a balançar seu andar rechonchudo, vi logo naquele rosto o garoto dos tempos do Colégio Adventista. Na hora, até mesmo o nome veio direto: Tiaguinho. E o sobrenome na ponta da língua, mesmo não vindo.

Estava vestido com elegante terno azul-escuro, gravata vermelha, camisa azul-clara por baixo. Fones no ouvido, cabelo ainda sendo uma mina de barro que revela pontadas de ouro, mesmo ouro enegrecido.

Ele jogava futebol que nem um pequeno endiabrado, foi um dos primeiros raios daquele reencontro mudo. Aliás, pequeno era sua marca. Afinal, havia também o Tiago Barreto, o outro também gente boa, o grande.

Mudo e elétrico, reencontro de um só? Terá me reconhecido e, tanto quanto eu, encabulado de bobagens, fez-se como quem nunca vira antes? Ou mesmo não conseguiu lembrar, apesar da faísca que chispou ao perceber olhares fraternos do rapaz que sentara em sua diagonal?

Por quê dessa dó? Vê-lo não tomou somente minha alma de afeto – 8ª série a última vez que nos falamos, você com aquele sorriso maroto de coelho só felicidade -, tomou-me de uma profunda tristeza-dó. Será que terei visto nos primeiros sulcos de seu rosto, próximos aos olhos e, de leve, saindo do nariz à boca, nesses sucos e olhar sério (cansado?) terei visto a mim mesmo?

Tanto compartilho (e que bonito isso!) também os trajetos que você faz todos os dias. Também você, pelo que vi no ônibus que pegou ao chegarmos no Terminal Rodoviário, mora no mesmo lugar da época da escola. Também sai todos os dias de manhã partindo do ritmo da vida e se enfurna por distâncias tão longas em quilômetros, cidades e velocidades, e depois volta à noite, já tarde e sem lágrimas, retorna ao aconchego da vilazinha provinciana nas margens do nervo urbano. Sim, vi seu ônibus vermelho e branco igualzinho ao que você pegava no Colégio Adventista. Não tive coragem para chamá-lo, com a cara séria que estava. Nem mesmo sei o que se passa e se passou nos passos que te trouxeram até essas ruas tomadas de frio e vento hoje. Mas compartilho com você um mundo de recreios, bolas, arquibancadas com lancheiras, choros com a mão esfolada e os joelhos das calças remendados com couro cinza.

Você também como eu, e nem sei se somos muitos dentre aqueles do pátio que espocava risadas, temos as primeiras marcas que denunciam o que fazemos contra nossos corpos. Qual será sua profissão hoje? Eu tenho escrito, escrito, matérias e matérias como quem foge dos trilhos de uma locomotiva desgovernada. Tenho perdido noites de sono corroendo preocupações de prazos e letras. Tenho ouvido muitos nãos, poucos sims e vários sims obscurecidos. Seremos muitos ou poucos nestes trajetos que conhecem os tornados e os canteiros dentre aqueles dos quais viemos?

Que dó e tristeza, que ternura! Quem somos? Nossas risadas ainda ecoam pelo mundo. E hão de ecoar enquanto tivermos olhares atentos para o que se passa nas brisas abaixo das grandes chaminés. Um dia, nossa presença há de silenciar neste mundo. Será quando seremos uma delicada nota na melodia celestial.

Somos irmãos embora você talvez nem tenha percebido ou lembrado. Procurei você após descermos do trem. Achei-o na fila do ônibus que, depois, cruzando ruas, ainda iluminava sua presença paralela e única à minha que também recostava as costas no duro banco gelado. Até que nossos ônibus seguiram caminhos distintos perto do Ipiranguinha, perto de onde nos encontrávamos, ali mesmo na Vila Assunção de nossa escola. Procurei você como quem me procurava a mim mesmo.

Em você ou em mim, não sei bem, vi sulcos de uma vida que se esqueceu de rir como antes. Mas, e vi bem visto, seus cabelos ainda esvoaçavam faceiros de ouro, provocando a rigidez de seu terno.

Tiaguinho, seus passos resignados tão diferentes das corridas de estripulias e de seu sorriso cheio de perguntas amigas. Seu olhar e a marca abaixo de seus olhos. Um espelho que me fez chorar.




*É ao olhar o espelho que nos penteamos.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Palavras Colhidas por Aí, por Aqui, lá no Fundão

Um dia serendipitoso é assim, sempre há algo no meio do caminho: palavras.

Palavras serendiptosas do dia:

"Coentro nascedeiro, que dá na roça, tem o cheiro bommmm. É coentro roxo."

E

"Quem faz, faz o possível. Quem pede, pede o difícil. Quem manda, manda o impossível."

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Hermeto - Vila de Paranapiacaba (epifania nº 2)

Somzando pra todo lado entre musgos e vidros quebrados. Noite entrando pelos clarões dos tímpanos.

Chega a pele do povo nos esfregávamos de ser gente. Tanto incômodo, tanto alumbramento, sentindo-se todos como o pequeno Manuel espiando a moça se rindo nuinha, coração jorrando batucadas.

Eita incômodo que não deixa desplantar raízes. Pés no chão. E o olhar? No infinível...

Clarão, espocadas de leite-música. Branco grosso, leitoso som de palmadas no balde colhido da vaca logo de manhã.

“Pra mim o maior doido que existe, o mais doido de todos os universos... é Deus, que foi quem colocou a gente aqui nesse mundo doido lindo”. Hermeto profetizando é esse aí.

“Uma salva de palmas pra Deus!”

E todos nós, ali, aplaudimos Deus. Com gosto, leite e mel escorrendo pelas mãos em palmas. Aplaudimos Deus, todos nós: Banda, Hermeto, Povo e Vaga-Lumes.

Obrigado Hermeto, por nos lembrar que um Deus caminha pela ventania da tarde.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Hermeto - Vila de Paranapiacaba (epifania nº 1)

Ta-tchiraup-Tchiraup-Pô-Pom-Paaaaa-Paaaaaa-Paaaaaaaaa-Borau-Bau-Pau-Peeennnnn-Bim-Paaa-Loren-Bem-Obanpê-Lorembê-Paummm-Shitonnnn-Tuta-ta-ta

Doou todas as suas cores para a música. Batendo mundos em bombas de bolhas d’água. Hermeto dos braços de marreta. No ar agitos de vaga-luzes. E a banda bem-bando o bom do tempo.

Chamou dois craques. Yamandu e Tiago Espírito Santo no maremoto de chamas, as palmasgritamultaflamejante. E Hermeto no nó do redemunho, a soltar mundos paralelos.

Todos no coro que Yamandu puxava repentista: “Hermeto é o maior” – “Hermeto é o maior” – “Hermeto é pai da música” – “Hermeto é pai da música” – “Hermeto é o maior” – “Hermeto é o maior”. No que, sem deixar barato, Hermeto corrigia missionário: “Ele diz que’eu sou’o’maior” – “Ele diz que’eu sou’o’maior” – “Vou dizer quem é o maior” – “Vou dizer quem é o maior” – “O maior é Deus do Céu”.

E o órgão de ventania, espatifando-se nos murros de contrabaixo, raspando pêlos na virilha da viola, deixando-se masturbar pelas pontadas do piano, pãraráparáparados pela bateria bicada de percussinha.

Foram-se Yamandu e Tiago. Ficou a voz. Profeta. Disse Hermeto: “Isso aqui é um templo. Foi lindo tocarmos aqui, fazer o que fizemos. É lindo porque tocamos com vocês”, e soprava sertões para o lado do povo esquecido do sol. Branco como barbudo. Hermeto mais: “Isso aqui foi lindo” – Yamandu e Tiago já com os grilos do mato lá pra trás – “Lindo porque vocês participaram com a gente. Isso é dádiva. É dádiva”.

E Som borbulhando cometas de cactos. Oratório de notas explosivas, louquinhas para voar. “A gente faz música universal, se chama música universal porque está fora dos padrões, é feita de amor e criatividade”. Segura o chapéu contra a luz azul que holofita ele.

Olha malucão, sereno de loucura. Sorve o suco pascal, Hermeto. Transmite: “Pra mim o maior doido que existe, o mais doido de todos os universos... é Deus, que foi quem colocou a gente aqui nesse mundo doido lindo”.

Portanto, pede estourando faíscas de alegria: “Uma salva de palmas pra Deus!”

E nós, comungados, inundados da relva-foguetório de som e abraçados pelas serras gordas e musgos, rompemos – revelação -, aplaudimos grandes aplausos para Deus.

TáTá- Lorembom – Rembom – Tchirá-Pá – PôrirabiringuindomlunbumbÁ – PirirápUmmm – Pim – Pum – Larapá – Bammmmm - ArraraaAAAAAAÁÁÁ

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Natureza Morta

Aí eu bombei ela uma pá de vez.

- E o que aconteceu?

Começou a sangrar. Acho que começou a arregaçar as prega do cú dela, meu. E aí?

- Por que você fez isso?

(olha pra baixo e balança a cabeça chupando os próprios lábios) ...

- O que ela falava?

Falava pelamordedeus, pára, pára, cê tá me arrebentando, seu filhadaputa, pelamordedeus, esses papo.

- O que mais?

Era isso aí, meu. Falava que tava morrendo.

- O que você sentiu?

(balança a cabeça e parece que vai sussurrar algo, mas estanca e olha nos olhos)

(silêncio)

(constrangimento)

- Você gostaria de fazer isso de novo?

Aê, cê tá achando que o baguio é preza? É nada, meu irmão. É louco.

- Por que você fez isso?

(abaixa a cabeça e respira, volta, levanta o queixo em seguida com uma careta de grande esforço)

(olhos nos olhos)

Cê curte uma?

- O quê?

Cê curte uma? Cê sabe.

- Não sei o que é. Você pode me dizer?

Aê, um baguio forte, mano. Trincado.

- Não sei se curto. Nunca experimentei.

No dia que cê’experimentar cê vai ver.

(buzina alta, barulho repetido, motor desligando e som de ventoinha)

- Sua mãe está aí fora te esperando, acho que vamos ter que encerrar por hoje.

Firmeza.

- Até.

Falou.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Concepção

Da transa gostosa naquela noite no motel Charm's, Eros e Tânatos tiveram um filho: o Jornalismo. Gerada no fígado de Eros, a criança nasceu com mãos e braços musculosos, mas o coração desgraçado pela fraqueza. Mal podia ficar em pé pois o sangue não era bombeado para o corpo.

Os médicos mais sábios do mundo vêm em filas desde as piscinas de Siloé. Cada qual propõe um tratamento para curar a disforme criança.

Certo dia, um velho doutor chegou com um elixir feito de sangue de azaléias.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Ele Não Serve Para Ser Jornalista...

Um repórter. Foi com calma e verdadeiro interesse que ouviu durante dois dias um cego sertanejo relembrar sua vida para, logo após perdoar o pai centenário durante a conversa, morrer sorrindo.

Foi com verdadeira abertura que:

- Esteve com os índios Cinta-Larga durante dois meses, vivendo na pele o martírio da perseguição constante. E ajudou a estancar o sangue de uma pequena indiazinha de 10 anos que ficou ferida após rajada de tiros de um grupo de fazendeiros locais;
- Prolongou um almoço por três tardes para apreciar dona Quitéria, de 103 anos, costurar histórias do cangaço e, depois, pensativa e faceira, presenteá-lo com a revelação de que fôra amante de Lampião e sua bordadeira preferida;
- Respirou o ar nauseante do lixão onde Maria Tião e seus doze filhos trabalham 15 horas por dia todos os dias;
- Morou por dois meses na comunidade de portadores de hanseníase, chorando silenciosamente com eles o abandono isolado de quem perdeu-se num grotão vazio do mundo com outros náufragos da indiferença...

Na sala com 5 pares de lâmpadas fluorescentes, o ar condicionado ligado na temperatura de 26 Cº, as cadeiras com cheiro de novas, compradas na Tok Stok da Marginal Pinheiros e uma garrafa de café metálica robótica. Sim, as 5 pessoas na sala discutem, em torno da mesa com o repórter, sobre o fracasso de sua última pauta na revista Comportamento Vencedor. Atrás da editora-chefe um quadro com a lista dos 3 piores releases do mês e uma careta desenhada.

Sim, pediram ao repórter que buscasse pessoas para dar um relato sobre seu maior trauma amoroso e como fizeram para superá-lo. Previam respostas doídas. Mas quem se dispôs a falar apenas tinha histórias levíssimas e engraçadas. Os que realmente sofriam não queriam, por nada desse mundo, abrir suas emoções para a revista Comportamento Vencedor. O repórter não insistiu. Não foi profissional! Você devia ter insistido mais! Eles tinham que falar!

Mas vocês queriam uma tese pronta para se confirmar, queriam que as pessoas fossem pressionadas a falar, queriam que as feridas fossem abertas, previam que os entrevistados falassem, disse o repórter aos editores. Porque um bom repórter consegue o que quer de seus entrevistados. Afinal, mesmo sem tempo de estabelecer qualquer tipo de vínculo, o repórter deveria conseguir o que a matéria precisava. Era o que os jornalistas de verdade faziam, senão pra quê serve um jornalista?!!! A sala tinha visores de acrílico dando para um corredor e para outra grande sala com dezenas de baias cheias de gente, inclusive alguns repórteres.

...fôra amante de Lampião e sua bordadeira preferida;
- Respirou o ar nauseante do lixão onde Maria Tião e seus doze filhos trabalham 15 horas por dia todos os dias;
- Morou por dois meses na comunidade de portadores de hanseníase, chorando silenciosamente com eles o abandono isolado de quem perdeu-se num grotão vazio do mundo com outros náufragos da indiferença...
... quando dormira com os cortadores de cana dentro de um galpão inundado de cantos caipiras que remetiam à terra natal;
...naquele dia, sol de outubro nos rostos das moças tão novas. Ele viu a menina mais linda do mundo indo para sua primeira noite de agonia no bordéu, levada pela mãe, e escreveu a história da menina em detalhes depois que viajou com ela, fugidos, para deixá-la tímida mas contente numa comunidade ribeirinha onde havia uma cooperativa de doceiras...

Mas é uma pena, ele não serve para ser jornalista.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

No Frio de Ferro

Neste dia frio, os carros passam esfumaçando seus traseiros quadrados. Quando estou tranquilo, me inquieto, me remexo, olho pra aqui pra lá, quero voar pântanos florestas desertos noites e dias. Mas quando estou assustado, pressionado, inseguro com o mundo de expectativas pelo meu desempenho... ah, nesse momento fico encantado com o rapaz que observa sereno a rua sentado na bancada da lojinha de vassouras e sabão. Admiro o velhinho que roda o bairro cumprimentando as mulheres que lavam as calçadas e que passa a mão na cabeça das crianças. Me absorvo no pedreiro que senta na porta da padaria batendo papo com o jornaleiro. Me desmancho no aroma gostoso que sai da casa de dona Ângela, seus bifes acebolados, seus varais dançarinos...

Mas e as pedras que se estilhaçam no coração? Como dizia o amigo Freud, somos de carne mas temos de viver como se fôssemos de ferro.

Me ajuda, Gil.

E Gil me ajuda:

"Por ser de lá do sertão
Lá do cerrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo"

("Lamento Sertanejo", letra de Gilberto Gil)

quarta-feira, 11 de julho de 2007

O Prazo e a Vida

O editor apenas quer tudo. O prazo? Mínimo. No meio do tempo expresso, um repórter. No meio da vida, no meio do mundo, no meio de suas angústias e das angústias da humanidade: um repórter.

Mas o prazo se esvai. Seu desespero é vão. Justo o repórter, que precisa mergulhar nas confissões, ouvir sacerdotal as dores interiores. Sim, sua matéria falará de dor. Ele precisa respeitar o tempo da dor, pois ela acena uma fina serpente de fumaça por muitos séculos antes de revelar sua explosão de fogaréu onde se delineia o verdadeiro rosto do sujeito, o entrevistado.

Como um administrador de empresas, o editor quer a dor a lágrima o riso. Mas não lhe importa qual o trajeto do rio interior. Nem quer saber das pequenas vilas por onde esse rio banhou corpos aflorantes, lavou tristezas e irrigou hortas. Não, o editor quer a água deste rio já engarrafada, tampada, adesivada e boa de se tomar. E ele quer o prazo, o mínimo, o tudo de tão pouco, um pouco de tudo, o rio engarrafado.

No meio do rio, um repórter mergulha seu rosto encharcado de sal. Afunda para que ninguém veja. Seus soluços aquáticos correm mundos debaixo da superfície, carregando seus ecos fluviais até desaguar no mar.

terça-feira, 10 de julho de 2007

A Brida da Tarde

As duas moças vestiam roupas decotadas e sensuais. A moça negra, rosto anguloso, olhava a paisagem passar pelas janelas do ônibus. A outra, cabelos castanhos claros, absorvida hipnotizada em seu livro aberto. Segurava as páginas levemente, mergulhava, mexia com mãos de seda mais uma página, voltava ao fundo oceano, lia.

Bolsas vistosas pousadas nos colos, ambas sacudiam com as ondulações das ruas. Sentadas nos últimos bancos, justo onde o sacolejar do veículo é mais bruto. A bonita negra tinha olhos mansos e boca grande. A galega sorvia cada passo dos personagens de seu livro. Capa clara, em letras vermelhas escrito: Brida.

Logo após a Ponte Cidade Jardim, antes de entrar na rua do Jockey – que na verdade é a Avenida Lineu de Paula Machado – a moça fechou o livro e olhou para sua amiga. Ainda com as páginas soprando vida, olhou para o lado e suspirou resignada:

- É, minha filha... chegou a hora....

Desceram.

A tarde era quente, as árvores da avenida estavam mais vistosas por causa da luminosidade que pairava no ar e o dia se dobrava para começar a jazer.

Eu posso apostar que, não apenas nos primeiros passos que deu na calçada, mas sobretudo em muitos momentos quando se vê sob um pesado corpo masculino ávido pelo sexo que pagou, ela fica remoendo as luzes do livro que tanto prazer lhe causam no caminho para o trabalho.

Antes que a próxima tarde chegue dentro de um ônibus, a hora é chegada. E é noite no motel.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Revolução Solidária

Hoje, mais de 20 mil cooperativas se espalham pelo Brasil. É o movimento chamado de Economia Solidária. Nesse modo de produção não há patrão nem empregado, as relações são horizontalizadas, há rotatividade de funções, o acesso ao conhecimento é disponível a todos os membros e os esforços e ganhos são divididos entre todos. Acaba-se aí a contradição entre Capital e Trabalho. Uma revolução silenciosa que está invadindo (ou ocupando? ai meu Deus, editores, chorem!) o País.

Sim meus caros, há cooperativas que não são nada revolucionárias, não participam de redes solidárias e só estão interessadas em roubar os direitos trabalhistas dos empregados. Para estas já existe nome: Coopergatos ou Cooperfraudes.

Mas a verdadeira Economia Solidária está aí, não esconde a cara, resgata a cidadania de muitos ex-marginalizados e constrói a voz dos que não tinham vez.

Tem quem não queira ver nada disso. Fecham os olhos, esnobam o movimento e, principalmente, desprezam os trabalhadores cooperados. Os que vêem dessa maneira ou são patrões que não querem perder sua mão-de-obra explorável ou são pessoas que, embora não sejam patrões, pensam como tais.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Manivela dos absurdos

Nem mesmo se sabe se absurdo é suficiente. O mundo de fora é mais organizado que o de dentro? Quem dentre nós sabe?

Hélio Pellegrino, venha dizer seus cobres e tintas. Dom Helder, venha soprar brisas nas cucas. Dona Adélia, venha cantar salmos eróticos. Meus amigos que se vê ou não se sabe ainda, pergunto eu: Quem atirou a última pedra?