segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Movimento da História, História do Movimento

Chicote nas costas, peso de montanhas férreas. E o vazio que se expande numa tela.

A tela vai chupando chapéus, sapatos, camisa, cinto, engole o vento. Quando cospe de volta, o mundo ficou redondo e pequeno, observável.

À puta que pariu chefes e chefas. À puta que pariu bocas cheias de certezas. À puta que pariu gestos civilizados que tanto temos. Tenho.

"Obedece quem tem juízo", dizem. "Desobedece quem tem vida", dizemos.

"Quem tem cu, tem medo", dizem. "Quem tem mão, estende", dizemos.

"Faça isso você", dizem. "Façamos nós", dizemos.

Nosso sol nasce empurrado todas as manhãs, sob a força de mãos generosas, unidas. É por isso que o sol nasce, nascido de gestos tão concretos quanto delicados. Nascerá.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Jornalista e sua Pureza Transcendental

O jornalista, para o bem do mundo, está situado muito acima da sociedade em que vive. De lá do alto, tudo enxerga, a partir de um lugar que lhe dá condições de imparcialidade. Por isso, quando vê qualquer movimento lá embaixo, na terra movimentada e cinzenta dos mortais, ele diz: “olha lá o que está acontecendo!”, e descreve a balbúrdia entre risos irônicos de quem tudo sabe no exato e na distância.

E quando um dos pobres mortais que se digladiam lá embaixo resolve também olhar para o mar cinzento em que vive e diz algo a respeito do que vê, o jornalista indignado o repreende dizendo: “cego! de onde você está não pode ver nada! cale-se!”. E se o pobre mortal ousa criticar o mar de fumaça em que está inserido, o jornalista-deus proclama a sentença que queima a ridícula pretensão do mortal: “o que dizes é pura ideologização”, entre caretas de desprezo. E o jornalista-deus, como está muito acima de toda a bagunça que sacode lá embaixo, mal ouve o pequeno som de explosão que evapora a presença medíocre daquele miserável que ousou julgar algo sobre sua própria condição.

No silêncio da alta montanha, com olhar sublimemente imparcial e justo, o jornalista ainda acende um cigarro e diz soltando fumaça em forma de argola no ar de sua onisciência: “não creio em nada acima da sociedade, sou ateu”, e cospe de lado.

domingo, 2 de novembro de 2008

Ao Toque

Ela se vestia de palavras e de profundidades. Quando abri a página do livro, lá estava ela, assim, adornada de verdades. Por dentro, em sua nudez, havia nela sonhos que eu não sabia se eram meus ou de um outro. Quando ela saiu do livro e veio em minha direção, pegava fogo, e suas chamas queimaram flores do jardim. Quando nos tocamos, ela se fez uma grande dúvida, enorme dúvida eloqüente.

sábado, 4 de outubro de 2008

Revolução desde o Chão

A história da humanidade passa não apenas pelos grandes acontecimentos gerais. Nem apenas pelas figuras de liderança amplamente conhecidas. A história humana – e me permita Ferreira Gullar – passa pela vida nos quintais, quartos, ruas, pelos encontros dos pequenos grupos, pelas conversas de calçada, pelas esperanças sentadas nas praças.

Do mesmo modo, pensando do ponto de vista da superação do capitalismo, a história da classe trabalhadora não se dá somente nos momentos decisivos e explicitamente revolucionários. Não se dá apenas nas grandes campanhas populares, nos protestos em massa ou na guerra política. A história da classe se dá também nas tardes silenciosas de estudos, na roda de música em volta do bar, nas relações diárias dos empreendimentos cooperativos, nos experimentos sociais, nas práticas alternativas de comunicação, cultura, saúde, relações com o meio ambiente.

Sem dúvida que as esferas explicitamente revolucionárias e as vivências locais se alimentam mutuamente quanto ao potencial que ambas precisam para se realizarem na sua radicalidade. Nem a revolução totalizante pode prescindir da sua correspondência nas experiências sociais mais locais e nem as experiências locais podem se realizar plenamente sem que a sociedade capitalista tenha sido aniquilada.

Talvez tenha sido essa visão de correspondência mútua entre as esferas amplas e mínimas que Ágnes Heller quis relacionar ao desenvolver a concepção de portadores de necessidades radicais. Necessidades que começam já no próprio seio do capitalismo, mas que precisam de sua superação totalizante a fim de se realizarem.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Prazos

Prazos, prazos, prazos! Quisera pagassem tanto quanto são curtos os prazos. E jornalista vai no psicanalista, vai no Instituto do Sono, vai no gastro, vai pra puta que pariu.

Prazo é que nem cú: é melhor saindo do que entrando.

Prazo é que nem cú: mesmo depois de sair, deixa rastro de merda.

Prazo é que nem cú: se forçar sangra.

Prazo é que nem cú.

Editores, vão tudo tomar no prazo! (seus féla da puta)

domingo, 13 de abril de 2008

Caja Negra

Não sou muito de assistir televisão. Zapear é algo raríssimo para mim. Mas vez ou outra me pego incapaz de trocar de canal. Uma das últimas ocasiões em que isso aconteceu foi ao ver o filme “O Iceberg”. Mais do que tudo, a atmosfera do filme foi absolutamente encantadora, estranhamente encantadora. Como uma constante tarde garoenta de outono na praia, o filme segue quase sem diálogos, em sua comédia ousada de gestos e absurdos tão delicados que se contraria a regra de ouro da comédia: rir com certa maldade nos lábios, certo sarcasmo irresistível. Não, em “O Iceberg”, o amor e as buscas humanas de reconciliação e desejo fluem como folhas cristalizadas de gelo num lago transparente. Fluem frias, gélidas... e lindas, brilhantes como somente um cristal de gelo pode ser.

Mas o que me move agora é o sentimento de outro filme, também quase sem diálogos (seria essa uma condição propícia para a criação de atmosferas cheias de alma e, portanto, silenciosas?). “Caja Negra” foi um soco de trovão feito de pétalas opacas. Uma beleza tão estranha e doce que a feiura torna-se a expressão do sublime.

A história tece pequenos remendos cotidianos de uma jovem convivendo e costurando pedaços até então separados das histórias de sua velha avó e seu esquálido pai reencontrado - que vive como pedinte nas ruas e dorme numa casa do Exército da Salvação. Ainda há um vizinho, velho marceneiro.

Feito meio em ficção e meio em documentário, o diretor argentino Luis Ortega usou apenas uma atriz profissional, a jovem “protagonista”. Os demais foram pessoas que, sob as lentes das câmeras – e com as lufadas de novas realidades que a presença de uma câmera sopra sobre a vida dos filmados – desfiaram os gestos viscerais de suas existências idosas. Os corpos, repletos da comunicação que as fragilidades dos corpos velhos possibilitam, irradiam luzes paralelas, sombras de uma transcendência calcada nas misérias do corpo em decadência. Corpo, corpo, corpo. E o mais.

Silêncio, palavras contundentes, sabedorias, dores e carinhos. Na mais íntima expressão das rugas, as câmeras encontraram o choro e o riso verdadeiros que estavam escondidos do cinema. Foi na vida que essas expressões de alma estavam guardadas, contidas, amaciadas. E foi na vida que o filme de Luis Ortega deitou seu olhar documental. A ficção ascendeu a realidade. Lá no alto, a realidade se banhou com gotas de sereno e manchou a tela opaca de “Caja Negra”. Os personagens, molhados de eternidade, não me deixaram dar risada, nem mesmo chorar, mas sim, um sorriso fez-se brando, tão brando, leve e infinitesimal, que só pude pairar tempos e tempos estanque diante da tela que corria os letreiros finais. O movimento era o estar. O ser.