quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Sou Rede, Sou Fios, Vocês

Como dizia meu amigo Riobaldo Tatarana, se eu fosse vender minha alma, venderia muita gente junto.

Não há uma só linha de escritos, uma só seqüência de roteiro, um só verso que não esteja impregnado das pessoas que transpassaram minha alma com suas vidas. A ponto de eu ser apenas um representante que materializa a confluência de muitos gestos, muitas intenções, muitas insinuações.

Se eu tiver um mínimo que seja de sensibilidade para escrever algo sobre o amor, por exemplo, se é que tenho alguma, eu a adquiri das muitas garotas que até mesmo sem saber incharam as horas límpidas que as imaginei junto a mim. Creio que para qualquer tipo de sensibilidade que tenha, as que responderam “não...” contribuíram talvez até mais do que as poucas que disseram “sim!”, embora uma ou outras destas últimas tenham marcado completamente minhas estradas silenciosas.

Professores, pai, a mãe daquela conversa madrugada adentro que clareou o rumo de minha vocação e me deu coragem de mudar, amigos e as pedras no sapato (tantas) que fizeram as tardes mais tristes e o coração mais atento. E os atrasos (obrigado, pai) na escola, benditos atrasos, por causa deles (e das regras rígidas que o diretor decretava) eu tinha que ficar de fora de toda a primeira aula e esperar a segunda começar, cinqüenta minutos depois. Benditos atrasos que me possibilitaram vasculhar todos os dias (é... eu era realmente o atrasildo da classe) os livros da biblioteca amanhecida com a pele clara e receptiva ao meu toque tão carente. Quantos livros, desde os contos de Herman Hesse até as fotos do grande livro de letras das músicas do Tom Jobim. Ler e escrever, todo dia, todo o atraso, castigo que me deu asas.

Na outra escola, mais desumana e mercadológica, já não me deixavam sequer esperar a segunda aula dentro da escola. Então, em meio às manhãs enevoadas e úmidas de Santo André, eu andava pelas ruas do Centro calado, Centro estremunhado, abrindo seus olhos de fachada devagarzinho, com ruído e ferrugem. Graças, porque a cada passo nas vagarosas manhãs antes que batesse o horário da segunda aula, eu dedilhava angústias, esperanças, sonhos, despertares verdadeiros, dos quais sou resultado grato. Cada ranhura e pedaço que despedaçavam me tornaram mais imperfeito, mais completo (com licença, Barão Vermelho), mais pinel, ou seja, mais vulnerável a fazer merda tanto quanto a cumprir minha pequena parte na luz desse mundo.

Obrigado, professora Márcia, louca tanta santa, nas peças e loucuras que rachavam minúsculas crateras de cor pelas paredes grossas da educação rígida, escola. Obrigado irmãzinha, pelos túneis de sofá que formávamos fugindo da móca monstra chorando pela casa. Obrigado, pai, pelos perfumes de circo que escapuliam de sua rigidez artística. Obrigado, pai, pelos apoios incontinentes de me salvar da perdição que tem nos salvado, paradoxo de nossa condição (pra que fugir?). Obrigado Carrascoza, Mayra, Calazans, Sevcenko, Adriana, Vitor, pelos exercícios de narrativa sensível das revoluções internas e externas que tentamos compor nos papéis e telas desenfreados. Obrigado amigos (tantos que fica até difícil escolher este ou aquele para representar), obrigado pelos preciosos estímulos à vida e à morte superior.

Cada linha, cada traço, cada som, cada tentativa são veias, peles, olhares seus que estão se manifestando, instaurando-se novos como a brisa mais antiga. Até no que não gosto e faço testando os limites dos editores, minha impertinência pertinente (como são todas, sempre, de todos) são pedacinhos que trago de vocês até aqui fora, com birra de pantim.

Parece até uma injustiça ser elogiado ou criticado sozinho. Sintam-se como são: eu.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Rachaduras

Quanto há de autonomia? Quanto há de liberdades? Capitalismo e liberdade? Como se dá essa liberdade?

Pululam, puxam, de todas as formas vão prendendo as gentes, o capitalismo em sua forma de micro-dominações. A televisão, adorada pelos vários cruzamentos da teia capitalista. A televisão, instrumento predileto da dominação pelo isolamento. Famílias atomizadas, condução, horas, aperto, horas, minutos, trabalho, as famílias chegam para se divertirem depois de um dia inteiro, jornada de 8 horas com cafezinho e ginástica laboral de 20 minutos, condução, as famílias se espremem no sofá sob cobertores, sob aplausos da platéia que julgam fazer parte, aperto, catraca, troco, mais 2 horas para voltar, cansaço, a família se fecha na sala iluminada pela TV, se esconde dos vizinhos que assistem ao mesmo programa ou outros que passam pelo cabo, a família se liga ao mundo, se conecta, se cosmopolitiza, se dobra no sofá, cansaço.

As chantagens do capitalismo. A chantagem da miséria (essa é boa, do Guattari). Quem exprime seus desejos, quem respeita seus desejos vai ficar de castigo. A punição? A miséria. Quem não se encaixa-se enforma-se deforma-se enquadra-se esquadrinha não ganha emprego, ou não permanece nele. Chantagens. Miséria.

O ar, a água, os pássaros, as cores, o sexo, os poemas, a solidariedade, as nuvens, as lagartixas, os gostos, os assovios? Na medida certa, na dose moderada, equilibradamente, somente um pouco depois do jantar ou na excursão de fim de ano. E tome seu chá verde para aliviar a dor, Campeão (soquinho no queixo).

Saiu do ciclo café-condução-trabalho-café-cigarrinho-trabalho-trabalho-café-cigarrinho-condução-família-refeição-televisão-sono-ronco-despertador-café-condução... vai preso. Ah, vai. Vai preso pelo preconceito. Vai preso pelos olhares. Vai preso pela recriminação dos amigos, da família, do empregador, do cobrador do ônibus, do chofer, e até dos colegas revolucionários. Vai preso.

Qual a revolução? A que deixa de lado a revolução do cotidiano? A que deixa de lado a revolução da família? A que deixa de lado a revolução das mentalidades?

Revolucionar. Romper e transformar as grandes estruturas sem romper e transformar as mentalidades, a vida cotidiana, a relação entre gêneros, a educação das crianças, as psicologias, a comunicação, sem romper e transformar a vida do dia-a-dia é revolução?

Rachaduras. Cada movimento, cada ato, cada pequeno processo minúsculo de subverter a ordem. Rachaduras. Vão tapando uma ali, outra aqui. Mas as rachaduras vão se espalhando em varizes infinitas pela parede...desmoronamento. Quando os grandes processos revolucionários acordarem, os minúsculos processos revolucionários já estarão quase completando a revolução. Aí, de mãos dadas, um e outro, grande e pequenos, pequenos articulados horizontalmente em um grande movimento, vão transpor o arame farpado. Capitalismo: anti-desejo.

Os corpos libertos, as crianças libertas, os pacientes libertos, as mulheres libertas, as chantagens desfeitas, desmascaradas.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

O Repórter, o Mundo e a Abordagem

O jornalista tem que fazer um grande esforço para captar a realidade – que sempre é muito maior do que o repórter pode sorver e transmitir por meio de uma linguagem. O problema é quando, ao invés de sair a campo para captar a realidade – o máximo que ele puder – ele sai apenas para recortar da realidade as peças de um quebra-cabeça que ele já montou ao seu modo – e em sua cabeça – antes de sair. Fazendo desta forma, ele não se conecta à realidade, apenas a usa. Ele somente se liga à realidade de suas concepções egóicas e não se liberta para a realidade do mundo (e, assim, tampouco ajuda a libertar ninguém).

Esse último jornalismo - egóico, prepotente e pré-conceituoso - serve ao capitalismo (sob o pretexto de ser objetivo, ágil e conciso, para se opor ao impressionismo, à visão política das relações de trabalho, ao tempo estendido de apuração e à extensão vital do texto), é apenas uma pré-pauta recheada de enxertos da realidade que a justifiquem. Nunca isso é reportagem ou notícia.

Porque, por melhor que tenha sido a apuração da produção (entenda-se “produção” todas as atividades que antecedem a saída do repórter a campo, tais como pesquisas, pré-entrevistas etc., realizada pelo próprio repórter ou por um produtor), sempre há diferenças entre a realidade presente na produção e a realidade do campo. E o mal repórter fará essas duas realidades coincidirem à força de fórceps.