Hoje, mal o vagão começou a balançar seu andar rechonchudo, vi logo naquele rosto o garoto dos tempos do Colégio Adventista. Na hora, até mesmo o nome veio direto: Tiaguinho. E o sobrenome na ponta da língua, mesmo não vindo.
Estava vestido com elegante terno azul-escuro, gravata vermelha, camisa azul-clara por baixo. Fones no ouvido, cabelo ainda sendo uma mina de barro que revela pontadas de ouro, mesmo ouro enegrecido.
Ele jogava futebol que nem um pequeno endiabrado, foi um dos primeiros raios daquele reencontro mudo. Aliás, pequeno era sua marca. Afinal, havia também o Tiago Barreto, o outro também gente boa, o grande.
Mudo e elétrico, reencontro de um só? Terá me reconhecido e, tanto quanto eu, encabulado de bobagens, fez-se como quem nunca vira antes? Ou mesmo não conseguiu lembrar, apesar da faísca que chispou ao perceber olhares fraternos do rapaz que sentara em sua diagonal?
Por quê dessa dó? Vê-lo não tomou somente minha alma de afeto – 8ª série a última vez que nos falamos, você com aquele sorriso maroto de coelho só felicidade -, tomou-me de uma profunda tristeza-dó. Será que terei visto nos primeiros sulcos de seu rosto, próximos aos olhos e, de leve, saindo do nariz à boca, nesses sucos e olhar sério (cansado?) terei visto a mim mesmo?
Tanto compartilho (e que bonito isso!) também os trajetos que você faz todos os dias. Também você, pelo que vi no ônibus que pegou ao chegarmos no Terminal Rodoviário, mora no mesmo lugar da época da escola. Também sai todos os dias de manhã partindo do ritmo da vida e se enfurna por distâncias tão longas em quilômetros, cidades e velocidades, e depois volta à noite, já tarde e sem lágrimas, retorna ao aconchego da vilazinha provinciana nas margens do nervo urbano. Sim, vi seu ônibus vermelho e branco igualzinho ao que você pegava no Colégio Adventista. Não tive coragem para chamá-lo, com a cara séria que estava. Nem mesmo sei o que se passa e se passou nos passos que te trouxeram até essas ruas tomadas de frio e vento hoje. Mas compartilho com você um mundo de recreios, bolas, arquibancadas com lancheiras, choros com a mão esfolada e os joelhos das calças remendados com couro cinza.
Você também como eu, e nem sei se somos muitos dentre aqueles do pátio que espocava risadas, temos as primeiras marcas que denunciam o que fazemos contra nossos corpos. Qual será sua profissão hoje? Eu tenho escrito, escrito, matérias e matérias como quem foge dos trilhos de uma locomotiva desgovernada. Tenho perdido noites de sono corroendo preocupações de prazos e letras. Tenho ouvido muitos nãos, poucos sims e vários sims obscurecidos. Seremos muitos ou poucos nestes trajetos que conhecem os tornados e os canteiros dentre aqueles dos quais viemos?
Que dó e tristeza, que ternura! Quem somos? Nossas risadas ainda ecoam pelo mundo. E hão de ecoar enquanto tivermos olhares atentos para o que se passa nas brisas abaixo das grandes chaminés. Um dia, nossa presença há de silenciar neste mundo. Será quando seremos uma delicada nota na melodia celestial.
Somos irmãos embora você talvez nem tenha percebido ou lembrado. Procurei você após descermos do trem. Achei-o na fila do ônibus que, depois, cruzando ruas, ainda iluminava sua presença paralela e única à minha que também recostava as costas no duro banco gelado. Até que nossos ônibus seguiram caminhos distintos perto do Ipiranguinha, perto de onde nos encontrávamos, ali mesmo na Vila Assunção de nossa escola. Procurei você como quem me procurava a mim mesmo.
Em você ou em mim, não sei bem, vi sulcos de uma vida que se esqueceu de rir como antes. Mas, e vi bem visto, seus cabelos ainda esvoaçavam faceiros de ouro, provocando a rigidez de seu terno.
Tiaguinho, seus passos resignados tão diferentes das corridas de estripulias e de seu sorriso cheio de perguntas amigas. Seu olhar e a marca abaixo de seus olhos. Um espelho que me fez chorar.
*É ao olhar o espelho que nos penteamos.
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