sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Encontro Sertanejo

A dança de piados tecia a tarde escaldante numa estrada poeirenta do sertão. Apesar do manto tórrido que se estendia pela caatinga, os passarinhos pulavam alegres. Quem vinha na estrada era são Francisco.

Do lado oposto, um almocreve tangia seu burro carregado de mamonas escorrendo sua baba pela base cortada. Silenciosos, saudados pela fileira de avelóis que vez ou outra quase fechavam a estrada perdida, os dois caminhantes foram se aproximando.

São Francisco carregava apenas um bornal murcho e certo brilho no olhar. Quando iam passando um pelo outro, cumprimentaram-se com um aceno: “opa”.

Vendo o tecido malamanhado que pendia esmorecido na cintura do santo, o almocreve então perguntou brejeiro:

- Ô compadre, o que o senhor leva aí nesse bornal meio sem sustância?

O santo, com as mãos livres, estendeu-as ao bornal e apertou o pano mole. Abriu então um sorriso luminoso e respondeu:

- Meu amigo, trago aqui comigo apenas a alegria. A alegria perfeita. Quer um pouco?

O almocreve riu e passou sem mais nada falar mas gostando da gentileza daquele dizer. Estranhamente, no entanto, notou algo diferente no prosseguir do caminho. Percebeu que o dia estava ensolarado, mas não tanto quanto seu coração.

Piavam como pífanos de uma estripulia sinfônica os pássaros, enchendo a tarde de manhã.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Terço da Paixão

Dentro da caixa de papelão, o menino ronronava. Sem saber quanto de febre fervia o corpo da criança, a mãe dizia em lamento: “Ô meu filho, não morra, não. Meu filho está morrendo...”

Já estavam largadas as coxas de frango e dois marmitex num saco ao lado. Pelo menos nesse momento, a fome sempre constante não mordia seus estômagos. Havia muitas horas que, de olhos fechados, o menino balbuciava um sopro morno e desfalecido. Clareava seus rostos o pisca-pisca da loja em frente.

Tocou o sino da igreja mais uma vez. Seriam 10 ou 11 da noite. Ainda andavam pessoas pela rua.

Então o menino abriu os olhos de leve. Tentou encontrar os olhos da mãe. Fixou-se neles. Esticou a mãozinha, que ela segurou paralisada. Apenas um som fino que tentou dizer “mãe”, mas se esfiapou.

Ele deitava suas costas suadas no colo do vento e subia bem alto, quase voltando a sorrir. A mãe lembraria que quis dizer tchau.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Revolucionários

Já enrugadas de tantos anos, as mãos quase centenárias iam desvelando as brancuras que se aqueciam sob os cabelos da menina. Uma pele alva de mocidade refrescante a receber o afago doce daqueles dedos que entravam e saíam por entre os fios longos e perfumados de sabão e âmbar.

Guardada pela boca trancada, o som da melodia antiga. A velhinha embalava a brisa. Leve vento hipnotizado pela candidez da música que mal se ouvia com os ouvidos exteriores.

Era tarde com sol. Há 159 anos atrás. Aquela menina tornou-se também uma senhora, um dia. Fez doces de cidra e doces de alma. O primeiro consolava o paladar, o segundo a esperança. Quando recebeu os 40 e tantos tiros de fuzis, com seus olhos vendados e mãos amarradas para trás, tinha nos lábios o sorriso decano que lembrava uma tarde de afago com sua vó.

Seu último suspiro ensangüentado era doce de lembranças.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Vapor Sobe, Sísifo

Não há nada para fazer hoje. Nem o sorveteiro passou buzinando. A rua só queima um vapor dançarino que se insinua poucos centímetros acima do asfalto. Vez ou outra um grito de mãe: “Lazarento, entra pra dentro senão te lasco na cinta!”. Choro de criança, rádio ligado, risada esgarçada.

Sair da cadeira é um desafio. Ficar também. Precisar estender umas roupas no varal eu até precisava, mas não vou. Por enquanto, a bacia também assenta os trapos largados que nela se amontoam.

Mas a Cátia disse que vem. Vai ser bom se ela não tiver uma daquelas crises. Não estou com saco para ouvir traumas do antigo namorado. Porra, não tem eu agora? Já tive paciência demais. Paciência hoje não. Dá vontade de pegar aqueles bracinhos finos, apertar bem e danar um beijo. Se ela começar a fazer corpo mole, jogar ela na cama e arrancar a roupa. Tesão de raiva é forte, de tédio mais. Um pensamento como um plano perfeito. Tudo programado? À puta que o pariu...

Sei que na geladeira tem um rum velho. Sim, evaporar como a fumaça morna do asfalto, lânguida, cheia de ausência. Queria esticar o braço e alcançar minha alma. Caralho, ainda pensando poeticamente. Que merda... Já cansei de ficar convencendo aqueles playboys da Augusta a comprarem meus fanzines. Vão tudo tomar no cu, isso sim.

Já perdi 5 quilos só de ficar bebendo, fumando e batendo punheta. Pedindo cigarro, ganhando rum velho, revendo as mesmas bundas da revista de mulher pelada. E trinta e seis anos nas costas. Ultimamente só com dinheiro de fanzine e camiseta tai dai. Vontade de cagar tudo logo, viu. Que se foda. Não ver o outros, bom pra caralho. Nunca mais me ver, a glória. Fuder com tudo e desaparecer. O vapor sobe.

A campainha está tocando. Deve ser a Cátia. Graças a Deus.