Certas canções que ouço, certas dores que testemunho, certas ideias que amo, certos sentidos que acolho, tudo me lembra que participo de todos. Sou eu e somos nós. Só a sociedade cegada pelo processo do capital pode se esquecer de ser comunhão. Somente a alienação pode cortar os vínculos que nos ligam. A universalidade somente pode ser considerada um delírio debaixo das relações coisificadas.
Mas adiante existe o mar. Adiante existem ilhas. Adiante corre um vento antiquíssimo. Ressucita-nos para o adiante... quando tudo começar...
quarta-feira, 31 de agosto de 2011
terça-feira, 30 de agosto de 2011
Inflexão
Como continuar saindo pro trabalho todo dia? Como continuar ouvindo palavrórios acadêmicos? Como seguir sentando e assistindo TV, assinando folha de ponto, fingindo risos, marcando reuniões, pagando contas?
Como continuar?
Tem momentos em que continuar parece um acinte.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Preparação Junina
Suspirava e inspirava, um longo caminho de ida e volta que atravessava a alma, teimando em animar o corpo enfraquecido. Soltava o ar, contraindo os olhos caídos.
Repetitivo, o barulhinho do aparelho que fiscalizava os sôfregos passos de seu coração dentro da vida.
Todos ao redor da cama. Olhavam silenciosos. Uma enfermeira no fundo do quarto. E debaixo de todos aqueles olhares reverentes, um esforço para mostrar que ainda queria ficar mais um pouco com cada um, como uma prova de amor. Fazia força para não expor sua dificuldade de trazer o ar ao pulmão esvaziado. Queria que não sofressem, bastava ele.
Com um pigarro proposital, o médico entrou no quarto. Falou num tom baixo e amigável. “Pessoal, agora vocês precisam sair”. Esboçou uma face simpática e esfregou as mãos no jaleco, concentrando nas pontas dos dedos a certeza que queria esconder.
Mas todos sentiam que aquela deveria ser a despedida. A cirurgia seria um ritual para servir mais à consciência do que à vida. Havia chance de 5 por cento, no máximo, segundo informou a junta médica.
Foi naquele instante, quando começaram a desejar boa sorte, abençoar e tocar a fronte do doente que aconteceu. Nos olhos daquele homem surgiu uma profundidade infinita. Seu olhar, antes esquálido como seus braços, agora se tornavam agudos e vastos ao mesmo tempo. Seus lábios se moveram e a bochecha ergueu o fino tubo que se dividia entrando por suas narinas. E sua boca pronunciou anasalada. “Eu queria que vocês sentissem a minha paz. Vão em paz”.
Eles saíram lentos, derramando lágrimas rápidas, deixando para trás alguém que sustentava um leve e novo sorriso. Sorriso que ele mesmo nunca conseguiu explicar de onde veio, nem com a ajuda do vinho e dos pinhões nas muitas festas juninas que se seguiram após essa tarde.
Repetitivo, o barulhinho do aparelho que fiscalizava os sôfregos passos de seu coração dentro da vida.
Todos ao redor da cama. Olhavam silenciosos. Uma enfermeira no fundo do quarto. E debaixo de todos aqueles olhares reverentes, um esforço para mostrar que ainda queria ficar mais um pouco com cada um, como uma prova de amor. Fazia força para não expor sua dificuldade de trazer o ar ao pulmão esvaziado. Queria que não sofressem, bastava ele.
Com um pigarro proposital, o médico entrou no quarto. Falou num tom baixo e amigável. “Pessoal, agora vocês precisam sair”. Esboçou uma face simpática e esfregou as mãos no jaleco, concentrando nas pontas dos dedos a certeza que queria esconder.
Mas todos sentiam que aquela deveria ser a despedida. A cirurgia seria um ritual para servir mais à consciência do que à vida. Havia chance de 5 por cento, no máximo, segundo informou a junta médica.
Foi naquele instante, quando começaram a desejar boa sorte, abençoar e tocar a fronte do doente que aconteceu. Nos olhos daquele homem surgiu uma profundidade infinita. Seu olhar, antes esquálido como seus braços, agora se tornavam agudos e vastos ao mesmo tempo. Seus lábios se moveram e a bochecha ergueu o fino tubo que se dividia entrando por suas narinas. E sua boca pronunciou anasalada. “Eu queria que vocês sentissem a minha paz. Vão em paz”.
Eles saíram lentos, derramando lágrimas rápidas, deixando para trás alguém que sustentava um leve e novo sorriso. Sorriso que ele mesmo nunca conseguiu explicar de onde veio, nem com a ajuda do vinho e dos pinhões nas muitas festas juninas que se seguiram após essa tarde.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Movimento da História, História do Movimento
Chicote nas costas, peso de montanhas férreas. E o vazio que se expande numa tela.
A tela vai chupando chapéus, sapatos, camisa, cinto, engole o vento. Quando cospe de volta, o mundo ficou redondo e pequeno, observável.
À puta que pariu chefes e chefas. À puta que pariu bocas cheias de certezas. À puta que pariu gestos civilizados que tanto temos. Tenho.
"Obedece quem tem juízo", dizem. "Desobedece quem tem vida", dizemos.
"Quem tem cu, tem medo", dizem. "Quem tem mão, estende", dizemos.
"Faça isso você", dizem. "Façamos nós", dizemos.
Nosso sol nasce empurrado todas as manhãs, sob a força de mãos generosas, unidas. É por isso que o sol nasce, nascido de gestos tão concretos quanto delicados. Nascerá.
A tela vai chupando chapéus, sapatos, camisa, cinto, engole o vento. Quando cospe de volta, o mundo ficou redondo e pequeno, observável.
À puta que pariu chefes e chefas. À puta que pariu bocas cheias de certezas. À puta que pariu gestos civilizados que tanto temos. Tenho.
"Obedece quem tem juízo", dizem. "Desobedece quem tem vida", dizemos.
"Quem tem cu, tem medo", dizem. "Quem tem mão, estende", dizemos.
"Faça isso você", dizem. "Façamos nós", dizemos.
Nosso sol nasce empurrado todas as manhãs, sob a força de mãos generosas, unidas. É por isso que o sol nasce, nascido de gestos tão concretos quanto delicados. Nascerá.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
O Jornalista e sua Pureza Transcendental
O jornalista, para o bem do mundo, está situado muito acima da sociedade em que vive. De lá do alto, tudo enxerga, a partir de um lugar que lhe dá condições de imparcialidade. Por isso, quando vê qualquer movimento lá embaixo, na terra movimentada e cinzenta dos mortais, ele diz: “olha lá o que está acontecendo!”, e descreve a balbúrdia entre risos irônicos de quem tudo sabe no exato e na distância.
E quando um dos pobres mortais que se digladiam lá embaixo resolve também olhar para o mar cinzento em que vive e diz algo a respeito do que vê, o jornalista indignado o repreende dizendo: “cego! de onde você está não pode ver nada! cale-se!”. E se o pobre mortal ousa criticar o mar de fumaça em que está inserido, o jornalista-deus proclama a sentença que queima a ridícula pretensão do mortal: “o que dizes é pura ideologização”, entre caretas de desprezo. E o jornalista-deus, como está muito acima de toda a bagunça que sacode lá embaixo, mal ouve o pequeno som de explosão que evapora a presença medíocre daquele miserável que ousou julgar algo sobre sua própria condição.
No silêncio da alta montanha, com olhar sublimemente imparcial e justo, o jornalista ainda acende um cigarro e diz soltando fumaça em forma de argola no ar de sua onisciência: “não creio em nada acima da sociedade, sou ateu”, e cospe de lado.
E quando um dos pobres mortais que se digladiam lá embaixo resolve também olhar para o mar cinzento em que vive e diz algo a respeito do que vê, o jornalista indignado o repreende dizendo: “cego! de onde você está não pode ver nada! cale-se!”. E se o pobre mortal ousa criticar o mar de fumaça em que está inserido, o jornalista-deus proclama a sentença que queima a ridícula pretensão do mortal: “o que dizes é pura ideologização”, entre caretas de desprezo. E o jornalista-deus, como está muito acima de toda a bagunça que sacode lá embaixo, mal ouve o pequeno som de explosão que evapora a presença medíocre daquele miserável que ousou julgar algo sobre sua própria condição.
No silêncio da alta montanha, com olhar sublimemente imparcial e justo, o jornalista ainda acende um cigarro e diz soltando fumaça em forma de argola no ar de sua onisciência: “não creio em nada acima da sociedade, sou ateu”, e cospe de lado.
domingo, 2 de novembro de 2008
Ao Toque
Ela se vestia de palavras e de profundidades. Quando abri a página do livro, lá estava ela, assim, adornada de verdades. Por dentro, em sua nudez, havia nela sonhos que eu não sabia se eram meus ou de um outro. Quando ela saiu do livro e veio em minha direção, pegava fogo, e suas chamas queimaram flores do jardim. Quando nos tocamos, ela se fez uma grande dúvida, enorme dúvida eloqüente.
sábado, 4 de outubro de 2008
Revolução desde o Chão
A história da humanidade passa não apenas pelos grandes acontecimentos gerais. Nem apenas pelas figuras de liderança amplamente conhecidas. A história humana – e me permita Ferreira Gullar – passa pela vida nos quintais, quartos, ruas, pelos encontros dos pequenos grupos, pelas conversas de calçada, pelas esperanças sentadas nas praças.
Do mesmo modo, pensando do ponto de vista da superação do capitalismo, a história da classe trabalhadora não se dá somente nos momentos decisivos e explicitamente revolucionários. Não se dá apenas nas grandes campanhas populares, nos protestos em massa ou na guerra política. A história da classe se dá também nas tardes silenciosas de estudos, na roda de música em volta do bar, nas relações diárias dos empreendimentos cooperativos, nos experimentos sociais, nas práticas alternativas de comunicação, cultura, saúde, relações com o meio ambiente.
Sem dúvida que as esferas explicitamente revolucionárias e as vivências locais se alimentam mutuamente quanto ao potencial que ambas precisam para se realizarem na sua radicalidade. Nem a revolução totalizante pode prescindir da sua correspondência nas experiências sociais mais locais e nem as experiências locais podem se realizar plenamente sem que a sociedade capitalista tenha sido aniquilada.
Talvez tenha sido essa visão de correspondência mútua entre as esferas amplas e mínimas que Ágnes Heller quis relacionar ao desenvolver a concepção de portadores de necessidades radicais. Necessidades que começam já no próprio seio do capitalismo, mas que precisam de sua superação totalizante a fim de se realizarem.
Do mesmo modo, pensando do ponto de vista da superação do capitalismo, a história da classe trabalhadora não se dá somente nos momentos decisivos e explicitamente revolucionários. Não se dá apenas nas grandes campanhas populares, nos protestos em massa ou na guerra política. A história da classe se dá também nas tardes silenciosas de estudos, na roda de música em volta do bar, nas relações diárias dos empreendimentos cooperativos, nos experimentos sociais, nas práticas alternativas de comunicação, cultura, saúde, relações com o meio ambiente.
Sem dúvida que as esferas explicitamente revolucionárias e as vivências locais se alimentam mutuamente quanto ao potencial que ambas precisam para se realizarem na sua radicalidade. Nem a revolução totalizante pode prescindir da sua correspondência nas experiências sociais mais locais e nem as experiências locais podem se realizar plenamente sem que a sociedade capitalista tenha sido aniquilada.
Talvez tenha sido essa visão de correspondência mútua entre as esferas amplas e mínimas que Ágnes Heller quis relacionar ao desenvolver a concepção de portadores de necessidades radicais. Necessidades que começam já no próprio seio do capitalismo, mas que precisam de sua superação totalizante a fim de se realizarem.
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